Os Anéis de Poder Temporada 2: Análise dos episódios 4 e 5

Bruno Birth
9 min readSep 17, 2024

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Entesposa conversa com Arondir.

O episódio 4 de Os Anéis de Poder foi um dos mais (senão o mais) folclóricos de toda a série. Circunstâncias de sobrenaturalidade presentes em pequenos contextos sociais (seja nos campos ou desertos) e que se espalham por histórias e canções contadas em tradição oral ou escrita primitiva são uma grande marca do Legendarium, povoando a Terra-média com características singulares de construção de mundo, sendo nesta temporada utilizadas com maestria por um roteiro que entende (e domina) a necessidade de fazer os diferentes núcleos avançarem no enredo da série, mas que guia tal direcionamento de modo muito poético e sensível. Um acerto absurdo este quarto episódio, senhoras e senhores.

Confesso que me emocionei muito com a cena do diálogo de Arondir com os ents e entesposas, ainda mais em uma época tão triste como a que vivemos, com brasileiros inconsequentes agredindo vorazmente a natureza com as queimadas. Em Os Anéis de Poder, os ents se revoltam com a danação causada nas terras do Sul pelas forças de Adar, e trazem consigo revolta instantânea contra os destruidores das densas florestas.
Quando a entesposa diz a Arondir que “perdão leva uma era”, há aqui uma ilustração clara do que citei acima, o roteiro avançando com a narrativa de um jeito prático e, ao mesmo tempo, poético. Sim, até que uma extensão florestal destruída por ações criminosas se restitua para que o equilíbrio natural se restabeleça, leva tempo, muito tempo. Antes disso, a natureza não perdoa. Em verdade, ela castiga; ou vocês acham que é por acaso que o aumento da temperatura média do planeta ou mesmo catástrofes como a que ocorreu no Sul do Brasil no início de 2024 são obra de pura coincidência?
Com velocidade de ações distintas, a ecologia trabalha da mesma forma no mundo real e no mundo de Tolkien, que é genial em mostrar em seus escritos como absolutamente tudo que existe em Arda está interconectado e gera consequências diversas. A natureza é viva no Legendarium, ela reage, o que torna a magia da Terra-média um conjunto de leis fundamentais científicas. Sim, para todos os efeitos, em Arda, o sobrenatural é ciência, conceito que a série, em vários exemplos, ilustra que entendeu com perfeição, trazendo para a tela o espírito da Terra-média.
Arondir assume com tristeza que já teve de usar machado para derrubar uma árvore, em uma das cenas mais marcantes da temporada anterior, deixando ainda mais dramático o diálogo com a entesposa. 10/10.

Tom Bombadil recede o Estranho.

Falando em interconexão com a natureza, o que dizer da introdução de um personagem tão emblemático como Tom Bombadil? Quando li O Senhor dos Anéis pela primeira vez, eu era só um jovem que queria ver batalhas, ou seja, achei Tom Bombadil um verdadeiro chato, um cara que estava na narrativa para atrapalhar meu engajamento. “Bruno tolo”, diria Gandalf.
Felizmente, o avanço da maturidade traz para muitos a revisão de vários conceitos, e foi o que aconteceu comigo, por exemplo, no que concerne ao modo de perceber este personagem. A aparição de Tom na série só exponenciou tal relação. Veja, Bombadil não faz magia, ele a vive. A natureza cresce e respira em torno dele e o que ele faz é apenas seguir o fluxo ecológico, como um barco de papel solto num curso de rio (sim, Finrod Felagund. Eu o citei).
Tom Bombadil não é um ser mortal, como muitos de vocês sabem. Existem diversas teorias sobre o que ele é e, ao meu ver, Tom é a personificação de Eru-Ilúvatar em Arda; um extrato carnal da superior existência etérea do deus supremo, uma testemunha atemporal. Foi espetacular vê-lo transposto para as telas de um jeito tão singelo. Ansioso por mais cenas com ele.

Os Stoors são apresentados.

Além dos Harfoots, temos os Fallohides e os Stoors como tribos distintas ancestrais dos Hobbits. Neste episódio, temos a apresentação dos Stoors, que surgem no caminho de Nori, Papoula e o Estranho.
Além da ambientação cuidadosamente desenvolvida, o que ajudou em muito no desenrolar dos fatos envolvendo o mago sombrio e os Gaudrim (locais de Rhun) que os perseguem, há também uma cena muito emocionante envolvendo a trajetória nômade dos povos halflings (pequenos), que só tem o impacto dramático necessário, pois há uma preocupação enorme dos roteiristas em criar os caminhos dessa narrativa com o mesmo carinho que Tolkien trata os Hobbits em O Senhor dos Anéis. O resultado favorável é muito claro e os muitos que devem achar chato esse núcleo, também não devem gostar muito de ler toda a primeira parte de A Sociedade do Anel.

Vou utilizar o núcleo dos Harfoots para, assim como na análise dos episódios anteriores, traçar uma nova reflexão sobre espinha dorsal da estrutura narrativa da série Os Anéis de Poder.
Tolkien fala muito pouco sobre os ancestrais dos Hobbits ao longo do Legendarium, portanto, a série está executando esta sub narrativa com preenchimentos criativos. Por que isso?
Como eu falei antes, a série se propõe a adaptar de modo dramático toda a Segunda Era, compilando seus eventos e personagens (separados por centenas e milhares de anos) em uma linha do tempo que permita a construção de um arco narrativo. Progredindo na análise que fiz anteriormente, outra consequência de tal execução de enredo é que todos os importantes acontecimentos do Legendarium relacionados à Segunda Era acontecem na série, só que de uma maneira diferente. E muita coisa que acontece na série, como toda a trajetória do Estranho, não acontece no Legendarium, pois as micro-histórias criadas para a série são o que eu costumo chamar de “narrativas de conexão”, aquelas que precisam existir para ligar os eventos importantes e canônicos que estão nos escritos de Tolkien e essencialmente, como expliquei, estão separados.
A compressão de tempo da série exige a existência de um senso de evolução dos acontecimentos, então os roteiristas criam essas narrativas que não existem no Legendarium para conectar as principais ideias; ideias estas que vão estar todas na série.
Por exemplo: a Batalha de Eregion, que vai tomar os episódios derradeiros desta temporada, tem motivações um pouco distintas (bem como aspectos convergentes) quando se compara livros e série. Esta proposta de adaptação faz isso e, pasmem, não é algo alheio ao que o próprio Tolkien pensava sobre sua obra. Leia o seguinte trecho do prefácio da primeira versão de O Senhor dos Anéis, redigido pelo professor:

Suplementei o registro do Livro Vermelho, em partes, com informação derivada dos registros sobreviventes de Gondor, notadamente o Livro dos Reis; mas, em geral, embora eu tenha omitido muito, aderi neste conto mais intimamente às palavras reais e à narrativa do meu original mais do que na seleção prévia do Livro Vermelho, O Hobbit. Aquele foi retirado dos capítulos iniciais, composto originalmente pelo próprio Bilbo. Se é que “composto” é uma palavra justa. Bilbo não foi assíduo, nem um narrador ordenado, e seu registro é embaralhado e discursivo, e algumas vezes confuso: falhas que ainda aparecem no Livro Vermelho, já que os copistas foram pios e cuidadosos e alteraram muito pouco.

Como se vê, Tolkien desenvolve o Livro Vermelho (documento histórico da Terra-média que ele narra ter sido criado por Bilbo, passado para Frodo e enfim Samwise) como sendo um compilado de eventos históricos sujeito a versões diferentes e revisões culturais. Por que ele assim fez? Para dar maior senso de realismo e imersão à sua obra. Não existe verdade absoluta sobre qualquer evento histórico da vida real, amigas e amigos, característica historiográfica que Tolkien conhecia perfeitamente e empregou na criação do Legendarium.
Sobre a série em si, vem a seguinte conclusão: Já que pela maneira na qual sua estrutura narrativa se desenvolve de modo diferente do que acontece em alguns pontos da Segunda Era escrita por Tolkien, que pelo menos a essência desses personagens e histórias esteja presente na mídia audiovisual, que é oposta à literária quando se pensa em como contar histórias nestes veículos de criação distintos. Bom, Os Anéis de Poder, por diversos motivos, cumpre esta missão com excelência, amigas e amigos.

Annatar.

Agora perceba um exemplo de como o genial se apresenta no texto de Os Anéis de Poder, utilizando todas as esferas de criação de mundo (do Legendarium e da série) que os showrunners se desdobraram para equilibrar. Entenda a forma como o roteiro inseriu a invisibilidade dos Anéis de Poder nesse episódio 5 da Temporada 2.
Ao dizer que parte do espírito do criador vai para criação e que falsidade foi usada por Celebrimbor para fazer os Anéis dos anãos, Annatar sugere que é preciso um maior engajamento vital entre os portadores dos Anéis dos homens, para que não só estes novos Anéis sejam menos suscetíveis à corrupção, como também possam espalhar uma corrente sobrenatural por todos os outros, unindo-os em um elo de remissão.
O engajamento vital entre os portadores e os novos Anéis é tão grande, que o véu que separa o mundo invisível do mundo real fica bem mais fino, tendo como consequência a invisibilidade dos portadores desses novos Anéis.
Só que isso não passa de uma mentira manipulativa de Sauron, pois o mal dele, não de Celebrimbor, está espalhado por todos os Anéis, ao passo que ele precisa da expertise do elfo ferreiro para que tais Anéis sejam forjados. Veja, o maior engajamento vital dos portadores dos Anéis, na verdade, vai consumir suas vidas com intensidade, como vemos acontecer com os Espectros dos Anel, Smeagol e até mesmo Frodo, que apenas utilizando-o no pescoço, mas por muito tempo, sente a destruição de seu aspecto físico, conforme se aproxima mais e mais da Montanha da Perdição.
Sobre a Forja dos Anéis de Poder, Tolkien trabalha muito a questão do caráter sobrenatural ter que se relacionar com um veículo físico, material, para ter sua energia liberada em Arda. A série entendeu essa relação perfeitamente.

Elendil tem uma visão na qual ele parece abandonar Númenor.

Tão bom ver a narativa de Númenor avançar. Óbvio que pra quem conhece os detalhes da queda da ilha, ainda há muito com o que se enraivecer e entristecer por vir. E também é triste não podermos assistir à ascensão desta ilha tão linda e poderosa. O recorte narrativo da série só trabalha a decadência de Númenor, enquanto começa enfim a dar sinais de que (pelo menos) veremos mais dos renanescentes fiéis aos caminhos de amizade com os elfos e conexão sagrada com os Valar. Atribuição necessária essa, pois sabemos que quando chegar a hora, Elendil não estará sozinho na mais importante missão de sua vida. Não falarei disso agora.

Durin III e os Sete Anéis de Poder.

Leia o que Tolkien fala sobre os sete Anéis de Poder dos Anãos, bem como sobre a consequência de sua utilização:

“E todos aqueles anéis que governava ele (Sauron) perverteu com mais facilidade, porque tivera uma parte em sua criação, e eram amaldiçoados, e traíram, no final, todos aqueles que os usavam. Os Anãos, de fato, mostraram-se vigorosos e difíceis de domar; pois pouco suportam a dominação da parte de outrem, e os pensamentos de seus corações são difíceis de vasculhar, nem podem eles ser transformados em sombras. Usaram seus anéis apenas para a obtenção de riqueza; mas a ira e uma cobiça desmesurada por ouro acenderam-se em seus corações, das quais depois veio suficiente mal para o proveito de Sauron. Dizem que a fundação de cada um dos Sete Tesouros dos Reis-Anãos de outrora era um anel de ouro; mas todos esses tesouros há muito tempo foram saqueados, e os Dragões os devoraram, e, dos Sete Anéis, alguns foram consumidos no fogo e alguns Sauron recuperou.” (A Queda de Númenor)

Preciso falar mais alguma coisa? Parece até que a série fez copypaste deste trecho literário de Tolkien pra desenvolver a forma comos os Anéis de Poder começam a moldar o destino de Khazad-dûm. Simplesmente incrível!

Bom, amigas e amigos. Por hoje é só. Minha próxima análise vai complicar os episódios 6 e 7, deixando a análise do episódio 8 para o final.
Se você não leu minha análise antrerior, dos episódios 1, 2 e 3, leia clicando AQUI.

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Written by Bruno Birth

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